sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
Relacionamento maduro, com referências imaturas.
Você pedirá a conta e pagará com o cartão de crédito prateado. É óbvio que não teremos dinheiro para pagar a vista. Seremos apenas dois pé-rapados no mundo. Mas você se oferece porque diz adorar pagar em parcelas – “é como se tivesse jantado desta forma todas as cinco vezes, entende?”. Acharei esta desculpa um máximo e terei certeza de que você é a pessoa mais incrível que eu tenha conhecido.
Meu fusca estará estacionado do outro lado da rua e sua bicicleta presa em um poste afastado. Você pedalará na velocidade da brisa fresca, se afastando mais e mais do carro que larguei na calçada. Enquanto meu cabelo solto se desmancha, as estrelas tentarão alcançar-nos (em vão).
Chegaremos justo na hora em que a noite vira madrugada. Será dia de irmos para o meu apartamento (é mais perto). A sala estará escura e, depois de se jogar no sofá, você ligará meu abajur de luz amarelada. Beatles? Não, vamos estar envinhados demais para o quarteto. Nossos ouvidos clamarão por solos, e o B.B.King começará a dar voltas na vitrola. Eu sentarei em cima de um livro do velho Buk. Você o tomará de minha mão e lerá um trecho de uma página qualquer – um cheio de bucetas, gozadas e sujeiras.
Riremos, lembrando de como era divertido ler Bukowski quando se tinha 17 anos. Era como estar subvertendo tudo ao mesmo tempo. Entraremos em um papo nostálgico com cheiro de canela e café quente. Estará frio lá fora e a guitarra do disco ainda estará solando. Você colocará meu cabelo para trás da orelha e eu sorrirei precedendo o beijo.
Beijaremo-nos como se todas as mentiras fossem verdades e vice-versa. Sua mão quente abraçará meu pescoço, que passou a noite a sustentar o vazio. Não falaremos nada. Meus dedos vão percorrer caminhos conhecidos como se fosse a primeira vez. A minha primeira vez, a nossa. A sua jamais. Vou misturar o seu gosto de café e vinho ao pouco de canela que guardei no chão da sala.
Nossa madrugada não perceberá o lado A do disco acabando, a luz do abajur esquentando, o contato macio da pele suada e o sol amarelando o céu. Você dirá baixo no meu ouvido que o dia já amanheceu – eu escutarei e só. Nossos corpos se levantarão e se envolverão em uma roupa beirando a seriedade.
Em uma sexta-feira, eu imagino como teria sido um possível ontem.
domingo, 5 de dezembro de 2010
Ser ou não ser.
Não ser para ser livre te faz capaz de ser mais do que seria. Eu pertenço aos planos, aos desejos sórdidos, aos sorrisos falsos. A vida nada mais é do que pertencer aos momentos que te pertencem. E todas as vezes que me algemo ao presente, noto que minha cadeia será sempre o futuro.
Estou presa e condenada a pertencer ao tempo, ao mundo.
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
A clara escuridão da sobriedade embriagada.
Não existe mar, não existe terra. Na falta de horizonte, o sol se põe azulado entre bigodes risonhos. As flores espalham sementes nas mãos siderais. Em um sopro estelar, passarinhos sobrevoam os caminhos coloridos escorridos. Cantam, pois não querem clamar. Eu sou gota amarelada de um copo quebrado e bêbado. O vidro reflete o recente buraco remoto negro. Tiro o paletó e entro no barquinho. Festa de sol na lua.
Geia me perguntou baixinho se eu existo. Não respondi, a música estava alta. Sete pecados discotecam a psychomachia. Urano me enviou um bilhete no guardanapo invisível. Agora sou vice-rainha do universo. Minha castidade é menor do que a luxúria. Mas minha luxúria não é maior do que a temperança. Notas sonoras cutucam meu ouvido surdo. Amplificadores planetários tremem a escuridão.
Moro nos montes, nos rios, nas fontes. Moro na gruta mais bruta que uma fruta. Possuo poderes e um deles é adiantar meses. Dentro de dois mil e doze tics e tacs pontuais, Tonatiuh beijará Metztli. Afinal, não existirá mais ninguém para impedir. Você tem medo? Eu também. Mas é no medo que olhos se fazem fortes e enfrentam a realidade.
Hoje acordo.
sexta-feira, 25 de junho de 2010
Como você está?
Por mais que as flores do meu jardim sejam apenas flores
As mesmas de qualquer um
Não ligo para o que estão cochichando por aí
E sim para o que estão espalhando
Sou daquelas que se fazem entrar por um ouvido
E sair pela boca
Eu estou bem
Os três ponteiros e o tic tac não me consomem fácil
Eu os consumo todos os dias
Otários
Ninguém é de ninguém
Só de si mesmo
Eu estou indo
Entre bons e maus bocados rascunho a vida
Sem pretensão alguma de estar certa
Apenas de viver
E ser vivida
Eu estou de mal a pior
Rastejo todos os dias para o juízo final
E, lá chegando, rio
Rio como se fosse a última vez
Com tudo que me resta
Eu estou assim
Oscilando
Sendo
Não é assim que as coisas deveriam ser?
domingo, 13 de junho de 2010
Com todo sentido possível.
Tiro os pés do chão toda vez que me acho capaz de levitar. O tijolo me prende. Ainda. O esconderijo cintilante guarda abraços e desprezos. O único ainda fiel. Não dou a mínima para os três corridos ponteiros. Bolas de sabão superam-se sozinhas. As observe estourando.
A noite deita em cachos simétricos. Duas estrelas rebeldes ainda me mantêm imóvel no bosque movimentado. Ouço teorias complexas na brisa musicada em dó, cheia de dó. Fiz questão de acompanhar todas as notas em um agradável chá.
Trouxe rapidamente o frio até meus ombros descobertos e vulneráveis. Esperei o quente confortante, que, distraído, dormiu. Sonhos sussurravam apoiados em mim.
Amanheceu e o que ainda tenho para oferecer é um tijolo: meu passado.
quinta-feira, 10 de junho de 2010
Não, sim.
ainda chego em casa e largo minha bolsa no chão
dou três ou quatro goles na garrafa de água
e parto para o banheiro
Quando olho no espelho a única
coisa que penso é que
não pedi para ser assim
Caminho até os discos e escolho
cuidadosamente só um
isso tudo enquanto
a voz da Rita soa no roda
roda musical
Passo os dias indo e vindo no chacoalhar
de um ônibus qualquer
Acordo quando meus olhos abrem
e durmo quando eles decidem
fechar
Não pedi para ser assim,
mas é
e sou
domingo, 30 de maio de 2010
Saindo da caverna
Cinco, quatro, três... O relógio começou a andar ao contrário. Como vamos sair daqui? Não tem saída! Pelo amor de todos os santos daqui e de lá, me tire daqui. Vai, corre também. Está me escutando? Olha pra mim, eu consigo tirar a gente daqui. Confia. Confia. Cinco, quanto, três.
Confia. Abra os ouvidos, de alguma forma você conseguirá me escutar. Abaixe esses braços, não levante as mãos para o céu. Que céu¿ Estamos aqui. Presos a terra. Somos as raízes, deveríamos ser árvores. Estamos cada vez mais entranhados, precisamos sair daqui!
Cadê você? Pare de se esconder atrás do passado. Tem muito mais pela frente. Muito mais. A nossa vida não acabou, não vai acabar nunca. Solte minha mão. Você está presa demais. Não vou conseguir te tirar daqui. Eu sei, vou me salvar sozinha.
Você não vê saída? Eu vejo.
sábado, 29 de maio de 2010
quarta-feira, 19 de maio de 2010
Parabéns, este é teu presente.
Ai, que primavera maravilhosa. Acordei com um afago na cabeça e por uma fração de segundos vi o dia ensolarado. Uau, eu estava fazendo 8 anos, meu quarto era azul e nada me deixava mais contente do que ver o He-man enorme do lado do meu espelho. Eu esperava ganhar o Pégassus. Um carrinho dourado de controle remoto. Não ganhei, já vou logo adiantando.
Meu pai abriu um sorriso largo e disse: “Filho, teu presente está te esperando lá fora.” – ótimo. Joguei a coberta do Mickey longe e corri até o jardim. Nada me esperava lá fora, a não ser grama, uma macieira, na qual meu pai vivia se gabando por ter, e uma bola jogada no canto direito, perto do muro. Fiquei uns 10 minutos, sem exagero nenhum, gritando e procurando o presente – enquanto meus pais riam da porta de casa.
Eu diria hoje que aquele riso todo foi desnecessário. É muita sacanagem fazer isso com um moleque de 8 anos, cheio de ansiedade correndo na veia e sem os dois dentes da frente. Eu já estava emocionalmente abalado, uma seqüência de risadas era o que menos precisava.
Minha mãe finalmente resolveu cessar meus gritos desesperados de “cadê, cadê, cadêêê” e apontou para a macieira dizendo que ela era meu presente. Isso mesmo, eu havia sido presenteado com uma árvore. Uma bonita e robusta árvore. Macieira. Entendeu? ÁR-VO-RE. Olhei atônito para meus genitores e recebi de volta olhos ternos como quem diz “E aí? Gostou?”
Caminhei fincando meus passos no chão até o presente e, com toda minha fúria infantil, o chutei. Quebrei o dedão. Enquanto eu gritava de dor e desapontamento, meu pai corria até mim. Passei a manhã no hospital de pijama, e voltei com o dedo enfaixado. Passei a tarde inteira no meu jardim olhando para árvore e imaginando por que meu pai havia tido a infeliz idéia de me dar aquilo. “A macieira nem dá maçã direito”, pensava entre as lágrimas grossas.
Hoje estou aqui, olhando para as palmas de Júlia, Paulão, Roberto, meu pai e minha mãe. Paulão e Roberto são meus vizinhos no prédio. Júlia é minha prima que mora comigo aqui na capital para estudar artes cênicas. Meu pai e minha mãe... Bom, eles são, respectivamente, meu pai e minha mãe. Depois de 22 anos percebo que deveria ter dado valor àquela árvore no exato momento em que a recebi.
Ela foi minha confidente por anos, dormia comigo depois de ter lido em voz alta livros e mais livros sobre homens e mulheres que sofriam e amavam, me olhava todas as vezes que eu chegava em casa e era nada mais (muito mais) que uma árvore. A minha árvore que se perdeu no cotidiano.
Queria a Lucy me lambendo o rosto, o He-man me olhando e a macieira no jardim nessa primavera maravilhosa. Mas meu passado não será nunca meu presente.
quinta-feira, 29 de abril de 2010
Realeza da realidade.
Quem havia me nomeado rei? O vento sussurrou perto do meu ouvido esquerdo. Disse com todas as palavras que eu era quem o fazia ventar. Oras, nada é mais poderoso. Ditava sorrisos, danças e abraços. Guiava bocas, mãos e pensamentos. Estabelecia desordem à ordem.
Ao fim do dia, quando as estrelas já estavam pontilhando o azul escuro, sentava em meu trono de veludo vermelho e vestia a coroa de sonhos. Diante dos meus olhos fechados, vi guerras apocalípticas, abertura de mares e tranças caindo de janelas. As árvores me reverenciavam e as formigas abriam passagem. Simplesmente me sentia nada mais do que o rei do mundo.
Hoje, abro os olhos e o sol já nasceu. Meus passos andam sem me ouvirem e o tempo zomba de minha vagareza. Sorrisos, danças, abraços, bocas, mãos e pensamentos decidiram por si só acontecerem. Quando olho para o céu, duas ou três estrelas ainda brilham. Ninguém declara guerra, Moisés não abre mares e Rapunzel cortou as traças. Árvores existem e formigas persistem.
O mundo é meu rei. Estou de joelhos esperando ordens.
quinta-feira, 22 de abril de 2010
Olhe lá, olhe cá
Hoje vi alguém sentado no meio fio quente enquanto escrevia, em um papel branco, letras frias. Durante exatos vinte segundos, encarei como se fosse a única mulher do mundo. Com as pernas cruzadas sustentando um bloco amarrotado, o lápis corria sem nem sequer desgrudar-se das letras. Talvez se eu tivesse mais quatro ou cinco segundos com aquele rosto suado e desconhecido, teria conseguido ler tudo que gostaria expressar.
A mulher de óculos escuros quadrados respirava curto, e eu estava no mesmo ritmo, mas ao contrário. Como se trocássemos de ar e ela sugasse todo o meu. Coçava a cabeça e secava a testa, enquanto caminhava contando os passos.
O meio fio meio frio enquanto quente estava, agarrava a mulher sentada como se nada existisse. O barulho do lápis machucando o silêncio da rua era inevitavelmente sensacional. Não parei para admirar de perto a beleza dos sonhos cuspidos. Tenho certeza que por um segundo deixei de conhecer a face hedionda. A esquina deveria nascer mais tarde e, então, não seria tarde demais.
quarta-feira, 24 de março de 2010
Com todo meu desprezível amor.
Antes de qualquer coisa, tire esse vestido vulgar. Acentua mais ainda seus traços de vagabunda. Olhando-te assim, faz parecer que, por menos de dez reais, consigo te levar para um quarto sujo e te comer de quatro sem piedade. Por qualquer gole de cerveja barata, você já se desfaz toda deixando aparecer o ombro direito. Tire o vestido vulgar e se vista como merece.
A perfeição soa tão clichê diante de você, que possui tantos defeitos. Longe de mim, odiá-los. Apenas os repugno de forma cortês. Não entendo o balançar dos seus quadris, riscando o ziguezague suspendido no ar. Meus olhos não acompanham com exatidão, tornam-se tontos e, involuntariamente, se fecham. Sinta-se livre para arrancá-los repentinamente, meus olhos não tem função alguma se não olhar para seu corpo.
Não adianta sussurrar ao pé do ouvido que sou o único que te faz sentir assim. Você fala, para todos, palavras estúpidas. Sinto pena, por isso a amo. Olhe no espelho esta noite, tire a maquiagem forte e a expressão de escrava. Desprezível. Quando olho para ti assim, sinto desprezo. Chego a crer que merece mesmo a vida imunda e ordinária – igualzinha a você.
Querida, me dê um abraço. Só assim me sentirei bem. Não há abrigo melhor se não seus braços. Daria todo ouro do mundo, é só pedir. Também posso fazer o que quiser. Pare de pontuar-se junto às ratazanas em uma noite trivial. É nítida a diferença, de longe, seus olhos brilham – enquanto outros apenas existem.
Puta pobre, você é a escória humana. A cada gozada que toma na cara, apodrece sentindo o gosto de velhos escrotos. Se seu sonho era ser medíocre, está de parabéns. Realizou com louvor. Preciso tomar um rumo na vida e largar de vez os seus gemidos fingidos.
Amanhã passo para mais umazinha.
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Agradecimentos: Nelson Pinho e Pamela Peixoto
segunda-feira, 11 de janeiro de 2010
Nosso olhar
Disseram que você me olha com olhos cansados, apoiando-os em largas olheiras marrons. Diga-me você: para que tanta eloqüência em um só olhar? De olhos fechados já me convence que escaladas não passam de degraus e goles d’água são apenas goles de água. Quando for preciso um piscar, dê-me metade. Não peço muito, nem o suficiente. Cerre estes olhos e junte as sobrancelhas, abrirei os meus e juntarei as minhas ao cabelo.
Se estiveres cansada, deixe-me apoiar em suas largas olheiras marrons. Diga-me você: para que tanto despudor em um só olhar? De olhos fechados já consegue me despir, fazendo parecer que nunca havia me vestido em toda minha existência. Quando for preciso um piscar, dê-me a terça parte. Peço pouco, quase o insuficiente. Aperte os olhos e contorça as sobrancelhas, escancararei os meus e perderei de vista as minhas.
Caia diante dos círculos marrons pendurados ao seu olhar cansativo. Diga-me você: para que tanta indisciplina em um só olhar? De olhos fechados já me faz infligir as leis humanas, divinas e utópicas. Quando for preciso um piscar, dê-me a quarta parte. Peço pouco, o insuficiente. Esprema os olhos e suma com as sobrancelhas, incharei os meus e esquecerei as minhas.
Detenha-se ao rabisco marrom sob a visão turva de um olhar cansado. Diga-me você: para que tanta vivacidade em um só olhar? De olhos fechados já me traz sede de viver, de tal forma que posso beber oceanos de vida para te encontrar sentada sobre infinito sépia do universo azul. Quando for preciso um piscar, dê-me a quinta parte. Peço pouco, quase o insuficiente. Beba os olhos, beberei os meus.
Vão dizer que você não me olha. Digam-me eles: para que tanto dizer? De boca fechada já me fazem ouvir o óbvio. Prefiro olhos. Quando for preciso um piscar, não pisque. Peço pouco: nada. Está cega então estarei cego também.