terça-feira, 24 de abril de 2012

Suburbanada.


Queria ter muitos motivos para odiar o subúrbio. Eu tenho, mas ainda são poucos. Poderia listar, no máximo, uns trinta. Começaria, claro, reclamando da desfavorecida disposição geográfico. Não tem praia, as montanhas não estampam cartões postais e parece ter sido climatizado para que o diabo se sinta em casa. Dentre os motivos o barulho do trem e o ponto de ônibus suado não ficaria de fora. Assim como as extensas filas na padaria.

As coisas ruins que acontecem abaixo da cidade (nesse tal de universo sub-urbano) estão aí. Todo mundo ouve falar. Chico Buarque mesmo compôs alguns versos sobre casas sem cor e ruas de pó - cidade que não se pinta e não tem vaidade. Quando eu era uma adolescente rebelde, ouvi esta música e senti raiva. Andava pelas ruas da Zona Sul sonhando com o momento no qual esbarraria com Chico  e diria: "vá à merda".

A verdade é que fiquei puta por não me enxergar dentro daquela música. Afinal, não era cabrocha, não frequentava roda de samba e nem andava nas quebradas com exus (muito menos). Ali, comecei a tentar definir melhor o saudoso subúrbio. E, a cada nova percepção sobre o lugar, mais longe dele me sentia. Passei a odiá-lo e compreender Cristo Redentor por estar de costas. Estava inconformada com livrarias de best-sellers e auto ajuda , com locadoras de esquina recheadas de blockbusters e com as pessoas - as quais julgava medíocres.

Achava o cúmulo devotas tocando de casa em casa pra semear a palavra do Senhor. Descrevia de forma pejorativa beatas e mais beatas que liam a Bíblia no sacolejar do ônibus, e que prendiam seus cabelos em rabos de cavalo contidos pra falarem mal das vizinhas de shortinho. Pra mim, tudo era um grande retrato da hipocrisia. Criticava também as tais de shortinho, que não valorizavam seus corpos e cultuavam o obsceno – como se já não bastasse o lugar.

Encabecei um estudo (quase-que-monográfico) de “A rotina das vítimas de uma atitude suburbana”. Nele, era indicado por hábito: se apoiar na janela e fofocar da vida do vizinho, pendurar roupas na varanda do prédio, abrir o porta-malas do carro na esquina de um bar e colocar música alta, criticar a desquitada, apontar o corno manso e chamar lojas de conveniência pelo nome do dono (vou ali no Seu Manel, aqui no Rogério e lá no Luizinho).

Talvez tenha passado dois anos tomando nota para criticar o subúrbio e as pessoas que aqui moram. De repente, notei que sempre olhei querendo não estar. De forma superficial e soberba, por algum motivo, me achava superior e entendedora. Tendo a atitude suburbana, criticada por Lima Barreto, de querer ser como a Zona Sul – cheia de gente bronzeada, senhoras e suas blusas de botões dourados, crianças dando a mão às babás de branco e senhores sustentando barrigas enquanto refletem sobre a politomia social.

Acordei um dia e, sem perceber, passei a achar bonito ver a dona de casa varrendo a calçada, os azulejos com desenhos de santo em cima das portas, o pagode descontraído dos bêbados de sempre e a devota que me perguntou se eu sabia quem era Jeová. Tudo passou a ser engraçado, mas o engraçado que não é de rir.

Passei a gostar até do vassoureiro que anda na rua vendendo vassoura de tudo quanto é tipo, com aquela voz grossa e medonha.  Só no subúrbio ainda tem o cara que conserta panela dentro do carro, o que sai de bicicleta vendendo cuscuz, e o que grita “pamonha quentinha” pelas ruas andando à 5km/h.

A feira não é hippie, de antiguidades ou orgânica. É feira mesmo. Fede à peixe morto, tem muita gente gritando,  carrinhos se atropelando, madamas de bobs e lenço no cabelo, barraca que vende pião, bola de gude e pipa. Há alguns anos, tinha eu puxando meu avô pra conseguir comprar um peixe no saquinho, ao lado da barraca de ervas. 

Nunca fui de soltar pipa, mas me lembro de correr atrás delas. Até hoje, os milhares de fios de telefone pendurados nos postes estão enroscados com as marimbas de linha e pedra. Sem falar nas chuteiras que também estão drasticamente presas nos cabos de luz, em um nó tão complicado que seria pouco chamá-los de nó.

Isso tudo é bonito. É bonito demais ver como as pessoas acordam cedo todos os dias para encarar o empurra-empurra do trem, metrô e/ou ônibus. Ver que apesar do percurso amassado ele vale por alguma coisa, seja qual for, no final de semana, no final do dia e, principalmente, no final do mês – ah, e no final do ano com o queridíssimo Décimo Terceiro.

Depois que comecei a entender o propósito disso tudo, me senti parte. Parte do homem que segura a mochila da menina pra puxar assunto na condução ou do que finge que está dormindo pra não ceder o lugar na volta do trabalho. Parte da mulher que está com o cotovelo doído de tanto se apoiar na janela pra espiar a festa do vizinho ou do festeiro que liga o pagode no máximo, lota a rua de fumaça com cheiro de linguiça e bebe cerveja com a rapaziada até a última mulher parar de sambar. Parte da senhorinha que veste a saia longa e anda nas ruas tocando as campainhas para pregar ou da pessoa que atende o interfone e dispensa a palavra de Deus porque precisa prestar atenção na receita da Ana Maria Braga. Parte até do bicheiro que fez amizade com meu avô (os dois agem como se isso fosse normal – e é).

A verdade é que acordo quando nem o sol acordou só para evitar o trânsito e não chegar atrasada. Assim como a maioria das pessoas por aqui. Pego mais de uma condução, não vivo sem meu bilhete único, compro sacolé por 1 real todo final de semana ensolarado, chamo as pessoas de Maria da esquina, Zé do churrasquinho, Reinaldo do bar e Luís do jornaleiro. Assim como a maioria das pessoas por aqui.

Eu posso passar mais dois anos querendo catalogar mentalmente todas as coisas tipicamente suburbanas, afinal, a vida é feita de generalizações e estereótipos. Só que agora eu faço parte deles.


segunda-feira, 23 de abril de 2012

É isso, sou isso.

Agora, sozinha no quarto, encolhida em um canto, percebo que estou fadada a ser pra sempre mulher. Mulher do padeiro, do pedreiro, do governador, do vizinho, da vida. Mulher de ninguém, mulher de mim mesma. E é sendo o que sou que um dia deixarei de ser o que jamais quis: uma, mais uma. Afinal, o que todos querem é deixar de ser mais do mesmo.

Agora, sozinha no, deixo o cigarro queimar a ponta dos meus dedos e a carne de meus lábios. Faço o que quero com meu corpo, com meu rosto, com meu espírito. Se é que existe algo além da matéria, algo além desse inferno que é estar aprisionada em quilos de carne e litros de água. O que me faz mulher não é ser o oposto de homem.

Agora, sozinha, consigo ouvir nesse vazio quieto o som do sangue que corre e dá voltas, voltas, voltas e mais voltas. Ainda estou fatalmente viva. Viva e nada mais que isso.Todos os dias meu corpo faz as mesmas as coisas sem parar. O coração bate, meus olhos piscam e meu cérebro pensa.

Agora, percebo que não dá pra querer não existir. Naquele momento, eu não posso fingir que estou em outro lugar. Ali, não dá pra me colocar em outro corpo, me retirar do meu. Estou fadada a ser mulher. Fadada a ser sua, ser do outro, ser de quem pagar para que seja. O que me faz ser mulher é você querer que eu seja.