quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Querência

Eu sou o que imagino ser
Serpente
Serpentina
Ser humano

Sou nuvem que apaga sol e faz chover
Molho
Alago
Depois deixo escorrer

Pareço ser o que jamais seria
Cama arrumada
Beijo apressado
Louça na pia

Você é o que eu quero
O que só eu sei querer
Manhã no sítio
Grama molhada
Entardecer

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Conversa quase-introdutória

A gente precisa conversar. Senta aqui do meu lado e tenta não olhar nos meus olhos. Preciso falar algumas palavras tortas e mal formadas. Prematuras e apressadas. Está acontecendo um imprevisto entre nós dois – um devaneio matutino, uma busca sem sentido.

Não me pergunte o que acho disso, se preciso, se quero ou se devo. Apenas ouça. Escute cada fagulha de pensamento e depois mude de assunto. Podemos falar sobre cinema francês, música britânica, literatura latina, gastronomia italiana e beleza americana. Mude de assunto como você sempre faz. Transforme todas as minhas confissões em simples emaranhado de letras mal costuradas.

Talvez seja melhor não. Só assim evitarei sua testa franzida.

sábado, 9 de abril de 2011

Ninguém quer

Haviam corpos deitados no chão e só eu os via. Uma mulher abraçava as pernas para não perder parte da única coisa que lhe resta: seu corpo. Estava nua, completamente crua. Sentada no tapete popular quente e insano. Pés pisavam, mãos balançavam e olhos olhavam – sem sentir, pender e ver. Ela estava ali, estendendo todo seu sofrimento mudo e ensurdecedor.

Permaneci por alguns minutos encarando todos os detalhes. Vi a pele negra surrada, as unhas encravadas e os olhos amedrontados. Quis sentar ao lado do vulnerável, mas me mantive presa ao meu chão – tão perto e tão distante. De repente, uma voz impaciente quebrou o silencio que fiz questão de manter.

“Lucia, levanta do chão. Está todo mundo olhando!”

Desviei minha atenção para voz e dei de cara com uma mulher loira e branca - quase angelical, se não fosse pelas sobrancelhas unidas e sisudas. Os cabelos estavam angustiados em forma de coque e tinha olhos consolados castanhos. Na camisa, uma nomeação: soldado de Jesus. Enquanto percorria novos detalhes, fui interrompida por Lucia.

Ela havia descruzado as pernas, deixando a feroz intimidade invadir os passivos que por ali estavam. Fui invadida pela vontade de tirar as roupas e impedir que aquilo tudo estivesse acontecendo. Quis roubar um pouco da verdade que estava sendo loucamente despejada do corpo inquieto e despreocupado. Mas outra voz cortou meus pensamentos.

“Coloca uma roupa nela”

A ordem saía da boca carnuda de uma negra parruda. Sufocada por uma blusa tom mustarda e caminhando curto com a saia marrom. Ela estava ao lado do soldado, sem parar de apontar e desapontar Lucia.

“Ela não quer, senhora”

Aquilo tudo me incomodava de alguma forma. A negra continuava insistindo na roupa. Passeei com meus olhos a fim de encontrar o céu e no meio do caminho me deparei com uma placa pregada na base militar do soldado. Letras gritavam: “Pare de sofrer”.

“Ela não quer, senhora”