Queria
ter muitos motivos para odiar o subúrbio. Eu tenho, mas ainda são poucos. Poderia listar, no máximo, uns trinta. Começaria, claro, reclamando da desfavorecida disposição geográfico. Não tem praia, as montanhas não estampam cartões postais e parece ter sido climatizado para que
o diabo se sinta em casa. Dentre os motivos o barulho do trem e o ponto de
ônibus suado não ficaria de fora. Assim como as extensas filas na padaria.
As
coisas ruins que acontecem abaixo da cidade (nesse tal de universo sub-urbano) estão aí. Todo
mundo ouve falar. Chico Buarque mesmo compôs alguns versos sobre casas sem cor e ruas de pó - cidade que não se pinta e não tem vaidade. Quando eu era uma adolescente rebelde, ouvi esta música e senti raiva. Andava pelas ruas da Zona Sul sonhando com o momento no qual esbarraria com Chico e diria: "vá à merda".
A verdade é que fiquei puta por não me enxergar dentro
daquela música. Afinal, não era cabrocha, não frequentava roda de samba e nem andava
nas quebradas com exus (muito menos). Ali, comecei a tentar definir melhor o saudoso subúrbio. E, a
cada nova percepção sobre o lugar, mais longe dele me sentia. Passei a odiá-lo
e compreender Cristo Redentor por estar de costas. Estava inconformada com livrarias de best-sellers e auto ajuda , com locadoras de esquina recheadas de blockbusters e com as pessoas - as quais
julgava medíocres.
Achava
o cúmulo devotas tocando de casa em casa pra semear a palavra do Senhor.
Descrevia de forma pejorativa beatas e mais beatas que liam a Bíblia no sacolejar
do ônibus, e que prendiam seus cabelos em rabos de cavalo contidos pra falarem
mal das vizinhas de shortinho. Pra mim, tudo era um grande retrato da hipocrisia.
Criticava também as tais de shortinho, que não valorizavam seus corpos e
cultuavam o obsceno – como se já não bastasse o lugar.
Encabecei um estudo (quase-que-monográfico) de “A rotina das vítimas de uma atitude suburbana”. Nele,
era indicado por hábito: se apoiar na janela e fofocar da vida do vizinho, pendurar roupas
na varanda do prédio, abrir o porta-malas do carro na esquina de um bar e
colocar música alta, criticar a desquitada, apontar o corno
manso e chamar lojas de conveniência pelo nome do dono (vou ali no Seu Manel,
aqui no Rogério e lá no Luizinho).
Talvez tenha passado dois anos tomando nota para criticar o subúrbio e as pessoas que aqui moram. De
repente, notei que sempre olhei querendo não estar. De forma superficial e
soberba, por algum motivo, me achava superior e entendedora. Tendo a atitude
suburbana, criticada por Lima Barreto, de querer ser como a Zona Sul – cheia de gente bronzeada, senhoras e suas
blusas de botões dourados, crianças dando a mão às babás de branco e senhores
sustentando barrigas enquanto refletem sobre a politomia social.
Acordei
um dia e, sem perceber, passei a achar bonito ver a dona de casa varrendo a
calçada, os azulejos com desenhos de santo em cima das portas, o pagode descontraído
dos bêbados de sempre e a devota que me perguntou se eu sabia quem era Jeová.
Tudo passou a ser engraçado, mas o engraçado que não é de rir.
Passei
a gostar até do vassoureiro que anda na rua vendendo vassoura de tudo quanto é
tipo, com aquela voz grossa e medonha. Só
no subúrbio ainda tem o cara que conserta panela dentro do carro, o que sai de
bicicleta vendendo cuscuz, e o que grita “pamonha quentinha” pelas ruas andando
à 5km/h.
A
feira não é hippie, de antiguidades ou orgânica. É feira mesmo. Fede à peixe
morto, tem muita gente gritando,
carrinhos se atropelando, madamas de bobs e lenço no cabelo, barraca que vende pião, bola de gude e
pipa. Há alguns anos, tinha eu puxando meu avô pra conseguir comprar um peixe no saquinho, ao lado da barraca de ervas.
Nunca
fui de soltar pipa, mas me lembro de correr atrás delas. Até hoje, os milhares
de fios de telefone pendurados nos postes estão enroscados com as marimbas de
linha e pedra. Sem falar nas chuteiras que também estão drasticamente presas nos cabos de luz, em
um nó tão complicado que seria pouco chamá-los de nó.
Isso
tudo é bonito. É bonito demais ver como as pessoas acordam cedo todos os dias
para encarar o empurra-empurra do trem, metrô e/ou ônibus. Ver que apesar do
percurso amassado ele vale por alguma coisa, seja qual for, no final de semana,
no final do dia e, principalmente, no final do mês – ah, e no final do ano com
o queridíssimo Décimo Terceiro.
Depois
que comecei a entender o propósito disso tudo, me senti parte. Parte do homem
que segura a mochila da menina pra puxar assunto na condução ou do que finge
que está dormindo pra não ceder o lugar na volta do trabalho. Parte da mulher
que está com o cotovelo doído de tanto se apoiar na janela pra espiar a festa
do vizinho ou do festeiro que liga o pagode no máximo, lota a rua de fumaça com
cheiro de linguiça e bebe cerveja com a rapaziada até a última mulher parar de
sambar. Parte da senhorinha que veste a saia longa e anda nas ruas tocando as
campainhas para pregar ou da pessoa que atende o interfone e dispensa a palavra
de Deus porque precisa prestar atenção na receita da Ana Maria Braga. Parte até
do bicheiro que fez amizade com meu avô (os dois agem como se isso fosse normal
– e é).
A
verdade é que acordo quando nem o sol acordou só para evitar o trânsito e não chegar
atrasada. Assim como a maioria das pessoas por aqui. Pego mais de uma condução,
não vivo sem meu bilhete único, compro sacolé por 1 real todo final de semana
ensolarado, chamo as pessoas de Maria da esquina, Zé do churrasquinho, Reinaldo
do bar e Luís do jornaleiro. Assim como a maioria das pessoas por aqui.
Eu
posso passar mais dois anos querendo catalogar mentalmente todas as coisas tipicamente
suburbanas, afinal, a vida é feita de generalizações e estereótipos. Só que agora eu faço parte deles.