quinta-feira, 29 de abril de 2010

Realeza da realidade.

Eu era o rei do mundo. Ao acordar, ordenava o sol, que prontamente nascia no céu alaranjado. Meus passos eram meus súditos, iam para onde eu bem entendesse. Sem nem ao menos reclamarem. O tempo clamava misericórdia, mas de nada adiantava. Cortava seus segundos, minutos e horas sem piedade.

Quem havia me nomeado rei? O vento sussurrou perto do meu ouvido esquerdo. Disse com todas as palavras que eu era quem o fazia ventar. Oras, nada é mais poderoso. Ditava sorrisos, danças e abraços. Guiava bocas, mãos e pensamentos. Estabelecia desordem à ordem.

Ao fim do dia, quando as estrelas já estavam pontilhando o azul escuro, sentava em meu trono de veludo vermelho e vestia a coroa de sonhos. Diante dos meus olhos fechados, vi guerras apocalípticas, abertura de mares e tranças caindo de janelas. As árvores me reverenciavam e as formigas abriam passagem. Simplesmente me sentia nada mais do que o rei do mundo.

Hoje, abro os olhos e o sol já nasceu. Meus passos andam sem me ouvirem e o tempo zomba de minha vagareza. Sorrisos, danças, abraços, bocas, mãos e pensamentos decidiram por si só acontecerem. Quando olho para o céu, duas ou três estrelas ainda brilham. Ninguém declara guerra, Moisés não abre mares e Rapunzel cortou as traças. Árvores existem e formigas persistem.

O mundo é meu rei. Estou de joelhos esperando ordens.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Olhe lá, olhe cá

Hoje vi alguém sentado no meio fio quente enquanto escrevia, em um papel branco, letras frias. Durante exatos vinte segundos, encarei como se fosse a única mulher do mundo. Com as pernas cruzadas sustentando um bloco amarrotado, o lápis corria sem nem sequer desgrudar-se das letras. Talvez se eu tivesse mais quatro ou cinco segundos com aquele rosto suado e desconhecido, teria conseguido ler tudo que gostaria expressar.

A mulher de óculos escuros quadrados respirava curto, e eu estava no mesmo ritmo, mas ao contrário. Como se trocássemos de ar e ela sugasse todo o meu. Coçava a cabeça e secava a testa, enquanto caminhava contando os passos.

O meio fio meio frio enquanto quente estava, agarrava a mulher sentada como se nada existisse. O barulho do lápis machucando o silêncio da rua era inevitavelmente sensacional. Não parei para admirar de perto a beleza dos sonhos cuspidos. Tenho certeza que por um segundo deixei de conhecer a face hedionda. A esquina deveria nascer mais tarde e, então, não seria tarde demais.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Com todo meu desprezível amor.

Coloque o rosto em minha mão. Afunde meus dedos, arranque-os. Eles não fazem o menor sentido se não estiverem entrelaçados aos seus. Quando lhe olho assim, de longe, percebo o quão perto gostaria de estar. Você faz com que me sinta incapaz até mesmo de sonhar. Escreva na minha boca tudo aquilo que já quis ouvir, vou escrever em seus ouvidos tudo aquilo que já quis falar.

Antes de qualquer coisa, tire esse vestido vulgar. Acentua mais ainda seus traços de vagabunda. Olhando-te assim, faz parecer que, por menos de dez reais, consigo te levar para um quarto sujo e te comer de quatro sem piedade. Por qualquer gole de cerveja barata, você já se desfaz toda deixando aparecer o ombro direito. Tire o vestido vulgar e se vista como merece.

A perfeição soa tão clichê diante de você, que possui tantos defeitos. Longe de mim, odiá-los. Apenas os repugno de forma cortês. Não entendo o balançar dos seus quadris, riscando o ziguezague suspendido no ar. Meus olhos não acompanham com exatidão, tornam-se tontos e, involuntariamente, se fecham. Sinta-se livre para arrancá-los repentinamente, meus olhos não tem função alguma se não olhar para seu corpo.

Não adianta sussurrar ao pé do ouvido que sou o único que te faz sentir assim. Você fala, para todos, palavras estúpidas. Sinto pena, por isso a amo. Olhe no espelho esta noite, tire a maquiagem forte e a expressão de escrava. Desprezível. Quando olho para ti assim, sinto desprezo. Chego a crer que merece mesmo a vida imunda e ordinária – igualzinha a você.

Querida, me dê um abraço. Só assim me sentirei bem. Não há abrigo melhor se não seus braços. Daria todo ouro do mundo, é só pedir. Também posso fazer o que quiser. Pare de pontuar-se junto às ratazanas em uma noite trivial. É nítida a diferença, de longe, seus olhos brilham – enquanto outros apenas existem.

Puta pobre, você é a escória humana. A cada gozada que toma na cara, apodrece sentindo o gosto de velhos escrotos. Se seu sonho era ser medíocre, está de parabéns. Realizou com louvor. Preciso tomar um rumo na vida e largar de vez os seus gemidos fingidos.

Amanhã passo para mais umazinha.



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Agradecimentos: Nelson Pinho e Pamela Peixoto

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Nosso olhar

Disseram que você me olha com olhos cansados, apoiando-os em largas olheiras marrons. Diga-me você: para que tanta eloqüência em um só olhar? De olhos fechados já me convence que escaladas não passam de degraus e goles d’água são apenas goles de água. Quando for preciso um piscar, dê-me metade. Não peço muito, nem o suficiente. Cerre estes olhos e junte as sobrancelhas, abrirei os meus e juntarei as minhas ao cabelo.

Se estiveres cansada, deixe-me apoiar em suas largas olheiras marrons. Diga-me você: para que tanto despudor em um só olhar? De olhos fechados já consegue me despir, fazendo parecer que nunca havia me vestido em toda minha existência. Quando for preciso um piscar, dê-me a terça parte. Peço pouco, quase o insuficiente. Aperte os olhos e contorça as sobrancelhas, escancararei os meus e perderei de vista as minhas.

Caia diante dos círculos marrons pendurados ao seu olhar cansativo. Diga-me você: para que tanta indisciplina em um só olhar? De olhos fechados já me faz infligir as leis humanas, divinas e utópicas. Quando for preciso um piscar, dê-me a quarta parte. Peço pouco, o insuficiente. Esprema os olhos e suma com as sobrancelhas, incharei os meus e esquecerei as minhas.

Detenha-se ao rabisco marrom sob a visão turva de um olhar cansado. Diga-me você: para que tanta vivacidade em um só olhar? De olhos fechados já me traz sede de viver, de tal forma que posso beber oceanos de vida para te encontrar sentada sobre infinito sépia do universo azul. Quando for preciso um piscar, dê-me a quinta parte. Peço pouco, quase o insuficiente. Beba os olhos, beberei os meus.

Vão dizer que você não me olha. Digam-me eles: para que tanto dizer? De boca fechada já me fazem ouvir o óbvio. Prefiro olhos. Quando for preciso um piscar, não pisque. Peço pouco: nada. Está cega então estarei cego também.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Bom dia, Sueli!

Acordar ao som do despertador era a última coisa que sonhava para minha vida madura. Este pijama azul pálido com botões mais escuros chega a ser quase um atestado de óbito para tudo que pretendia viver. Quando olho para o lado, dia após dias, me deparo com Sueli. Linda. Usa sempre esse pijama amarelo desbotado que combina perfeitamente com o tom de pele.

Sueli é dez anos mais nova; quando comparada a mim. Em certos momentos, chego a sentir pena por estar casada com um homem sem tempo até para reclamar das circunstâncias diárias. Morena, alta e exatamente com três dobrinhas formosas na barriga. Nossa! Eu fico louco com as dobrinhas de Sueli! Agora ela cismou de querer fazer dieta, as mulheres cismam com coisas desnecessárias. As dobrinhas são sensuais, cansei de falar isso para ela. Eu quero mais é ficar gordo, cultivar uma bela barriga de chopp e assistir a reprise do futebol enquanto admiro, no intervalo, minha beldade cozinhando um delicioso almoço dominical.

Assim que casamos, virávamos noites conversando sobre tudo. Colocávamos um bom disco na vitrola e apenas curtíamos todas as palavras que cada um despejava na sala escura. Isto não faz muito tempo: cinco anos atrás. Susu tem que decidir se terá filhos logo, estou ficando velho e os marmanjos do meu trabalho sempre mostram as fotos na carteira. Meu sonho sempre foi ter fotos na carteira.

“Este é o João, meu caçula. Garotão... Puxou o pai! Vai ser um grande jogador de futebol, flamenguista que só ele. Esta aqui? Suzana, meu camarada. Já viu olhos mais lindos que os dela? Iguais aos da mãe. Minha patroa caprichou na Suzana. O mais velho é Tiago. Só joga vídeo game, tenho que ensiná-lo a conquistar mulheres.”

Sempre achei que teria um filho gay, não sei o motivo. Quando era mais novo, sentava no telhado da casa de minha avó e idealizava todos os meus filhos: João, Suzana e Tiago. Nunca sequer conversei com minha mulher sobre ter filhos. Assim que ela abrir os olhos, proporei uma prática (...)

Péssimo pensamento! Se ela souber que me veio à cabeça algo do tipo é capaz de cortar minha cerveja. Até que não seria má ideia; cortar minha cerveja me daria mais vontade de me impor. Sueli me domina. Adoro ser dominado. Deve ser porque fui criado só por mulheres, verdadeiro terror. Minha avó gritava feito uma bruxa velha e minha mãe quase arrancava minhas orelhas. Ainda bem que saí daquela casa assim que completei vinte anos – de mãos dadas com meio metro de sonhos, que acabei por perder no caminho.

Sueli vive me dizendo que eu tenho que voltar a falar com elas. Aliás, Sueli vive me dizendo muitas coisas. Algumas até consigo absorver, outras seguem naturalmente para o lixo mental. Esta mulher não cala a boca, acho que é seu único defeito. São raros os momentos que perco a paciência, sei me controlar. Por exemplo, nunca disse a Sueli que precisa emagrecer e comprar um pijama novo. Aliás, puta que pariu, nem sei como consigo me controlar quanto a isto!

Passei cinco anos com esta mulher e não é nem de longe o tipo que imaginei para mim: fode mal, não sabe cozinhar, ronca e cheira a produto de limpeza. Frustrações na cama até dão para suportar, afinal, sexo é sexo. Mas comer aquele arroz cheio de cebola, ouvir o ronronar nada discreto e beijar um litro de desinfetante não dá. É difícil. Sairei do casamento pronto para canonização.

Apesar de que ser santo envolve certas abdicações, e estou farto delas. Quando mais novo, escrevia listas de realizações futuras; guardei a maior: cinqüenta e oito itens. Em anos, ela não aumentou e, muito menos, diminuiu. Preciso reencontrar meu meio metro de sonho e passear com ele por aí. Só eu e ele, sem Sueli. Vou tirar o pijama azul pálido e pedir o divórcio assim que esta mulher abrir os olhos!

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Carta de um descrente.

Engoli a pouca saliva que guardava na boca e, por alguns segundos, a deixei completamente seca. Fiz isso para dizer que já não quero conquistar hoje o alguém que ontem conservei, meu pulsar pede o versa e o vice, talvez o vice-versa. Não lhe culpo, nem você sabe o que está acontecendo e o que aconteceu. Eu acredito.

Quando disse que o futuro existe porque o passado não é bom o suficiente para se manter; estava buscando um sentido, qualquer um dos cinco. Aquele outubro não foi um mês, e o dia não teve tarde. Estava quente e, se paro por dois pingos dágua, sinto o que senti enquanto vesti azul e você cinza. Agora parece flor de uma noite bem dormida; em consequência de um sonho bom, que provoca na boca um rasgar confortável.

Eu estava submersa quando acordei e ainda sinto os braços líquidos e macios, alguém disse meu nome pedindo que eu pousasse no vazio do mundo, pousei. Quis chorar, quero. Dois tempos e duas razões, já não sei qual prefiro; tão diferentes em degradè. Cada quilômetro percorrido por lágrimas ralas me custou três colheres de yogurt e cada botão que desfiz foi de graça. É pleonasmo agradecer, é eufemismo só agradecer.

Calado, como quem ouve uma sinfonia, eu acredito.


sábado, 8 de agosto de 2009

Dois goles de palavrão e uma cerveja.

Quando entrei na casa de Marcelo, me deparei com Luiza e João dividindo o sofá de couro marrom e bebendo cervejas enquanto riam alto por algum motivo que não fazia questão de saber. Marcelo olhava a rua através de uma janela de madeira que se recusava a fechar nos dias mais frios do ano. Sentei na cama, deitei na cama. Marcelo já era meu amigo há 3 anos e nunca vi aquele vagabundo procurar um emprego, Marcelo recebia cheques de seus pais que viviam no Rio de Janeiro e torrava tudo em cerveja e cigarro, nem para comprar algo de boa qualidade o infeliz prestava. João é um grande filho da puta, mas apesar de tudo não posso negar que a loucura dele era o que me mantinha ali, ainda, como se fossemos irmãos de sangue. Luiza trabalha no bar do tio, recebia umas cantadas de uns bêbados fiéis e cem reais por mês. Loira e alta, ela pecava só na falta de compostura; algo que não fazia tanta diferença dentro daquele apartamento.

As risadas dos dois abafavam os resmungos de Marcelo, que continuava olhando através daquele retângulo de madeira. Não dei a mínima pra tudo que estava acontecendo na sala, já estava cansada daquela vida ridícula em Brasília. Não fomos feitos para essa merda toda, essa maldita prisão ao ar livre. Fiquei olhando o teto com infiltrações enquanto recusava a cerveja oferecida por Luiza, Marcelo enfim resolveu mudar a direção do olhar e me acompanhou, contemplando o teto manchado. Ficamos ali na cama por volta de quatro anos ou quatro minutos, não sei ao certo.

João gritou pedindo liberdade, mas não moveu nenhum músculo do rosto para tal; Luiza o apoiou e subiu no sofá com os braços erguidos buscando a lua, que naquela hora deveria estar cheirando à sushi. Quando ouvi aquelas quatro sílabas saltei da cama e quebrei um estrado, Marcelo quebrou outro e se levantou também. Acho que a solidão que o teto se encontrava naquele momento abria a porta para saírmos, fui na frente e não reparei a ordem que me seguiram. Fomos ao banco e retiramos todo dinheiro que encontramos em nossas respectivas contas. Luiza ligou pro tio, Marcelo pros pais, João pra puta que ele se apaixonara e eu liguei pra casa de Marcelo, para conferir se o teto permanecia em silêncio.

Gastando o salário mensal de garçonete com cerveja, distribuindo a quantia dos cheques fraternais para os mendigo e gastando o amor antes disperdiçado, lá estávamos os quatro no Rio de Janeiro. Luiza agora é garçonete de outro bar, Marcelo mora na casa dos pais, João se apaixonou por outra puta e eu não conheço o significado de gratidão.